LINA LADY LINA:
DAMA DA POESIA
Ronaldo Werneck
As teclas travam. O texto entristece. Um nó na garganta. Um peso no coração. Palavras que calam. Digito com dedos enlutados esse necrológio para minha grande amiga Lina, morta há três dias. Três dias já e sua voz vinda pelo celular de Brasília há menos de outros 15 – e reverberando em meus ouvidos ainda agora. Sua voz ainda canção e sempre, tão clara e delicada:
“Boa tarde, Ronaldo, realmente pneumonia não é uma coisa fácil, não. É uma convalescença muito lenta e gradual. O tempo aqui é uma memória, sabe? Vamos ver, espero sair dessa, né? Porque o único sintoma que eu tenho, Ronaldo, é falta de ar. Não tenho febre, não tenho tosse, não tenho dor no corpo. Tô tomando antibióticos fortíssimos. Vamos ver. Hoje eu fiz exame de sangue pra ver minha situação... também espero sair dessa com muita lisura e muita maciez”.
“Aqui sonhamos. Aqui vamos morrendo./ Na verdade, somos tudo o que somos,/ ao pé desta árvore artificial/ arrancada às florestas do mundo!” – escrevia sua grande amiga Cecília Meireles, no poema “Abajur de Lina”, 1951. Na tarde da última terça-feira, 01 de setembro, a poeta cataguasense Lina Tâmega Peixoto (1931-2020) falecia em Brasília, para onde se mudara ainda antes dos anos 1960 e da própria inauguração da capital. Ela foi uma das nossas maiores vozes na poesia – não só de Cataguases, como de Brasília e do país como um todo. Afora a poeta maior, Lina era uma lady, uma dama como poucas, gentil, sensível, arquétipo de um tempo que remetia a tempos de outrora, tempos de extrema delicadeza. Mais que simples dama – disse um dia o poeta Joaquim Branco –, na verdade Lina foi nossa primeira dama da poesia.
Lina, esse rio primal
Nós estivemos juntos muitas vezes ao longo de nossas vidas, as duas últimas em lançamentos de meu livro “Momento Vivo”, quando ela esteve presente tanto no Rio quanto em Portugal. Foi a última vez que nos vimos, naquele outubro do ano passado em Lisboa. Uma honra ser seu amigo, sempre uma honra sua presença, uma tristeza só a sua ausência – essa ausência que se fará sentir a partir de agora, a falta daquele largo aprendizado vindo de suas palavras que chegavam não mais por cartas, mas por constantes e-mails e até mesmo por whatsapps, que Lina esteve sempre antenada em seu tempo.
Em 12 de julho de 2014, Lina me escrevia do Rio, em trânsito para o lançamento de seu livro “Entre desertos” em Cataguases, muito preocupada com nosso grande amigo, o poeta Francisco Marcelo Cabral (a quem tratava por “Cabruxa”), seu querido companheiro de mocidade na aventura de editar a Revista Meia-Pataca. Cabruxa estava adoentado no Rio, mas me mandara um longo email, bem-humorado como sempre, analisando meu vídeo “Duas Faces”, razão pela qual achei que ele estivesse bem. O que não era verdade.
“Estou à disposição para a entrevista na Rádio – Lina escrevia – ou qualquer outra ação literária que resulte numa convergência de estímulos e descobertas. Também soube notícias do Cabruxa, mas não tão otimistas quanto as suas. Há uma suspeita de câncer no pulmão e só na segunda-feira se saberá o resultado. Ele já foi avisado (intempestivamente por uma médica maluca) e está nervoso e preocupado, com razão. Esperamos que tudo seja branco e puro, sem manchas de escuridão”.
Não foi. Um mês depois (agosto, agosto!) Cabruxa morria no Rio de Janeiro, e lá estávamos Lina, minha mulher Patrícia e eu no velório do poeta, chorando nosso grande amigo. Não imaginávamos que o mesmo mal que o matou atingiria seis anos depois os dois pulmões de Lina e a levaria também – e para sempre. Faço minhas as palavras do poeta Francisco/Cabruxa Marcelo Cabral em seu poema-livro “Inexílio”:
“... nada, Lina, esse rio primal,/ com suas lições de luz e ventos e esmeraldas,/ Virgílio Beatriz de uma comédia sem inferno/ ovelha pastora forte macia vertigem/ da espiral azul que eu estou revendo agora/ sob a forma volátil da fumaça de meu cigarro/ e estou sentindo sob os pés, nesse ponto mais firme/ onde me firmo, Lina-lináptera se afastando/ me afastando, lírio, ardósia, púrpura,/ sol do planalto”.
Ainda agora, no último 12 de agosto, Lina me mandava um zap: “Estou lendo Gilbert Durand. Na conceituação que faz da civilização ocidental cita um provérbio chinês, muito adequado pra o governo atual. Eis: Se apontares a lua com o dedo, o imbecil olhará para o dedo”. Lina lunar via lua em todo lugar: “Debulhado, o dia/ dependura a lua”.
Um abraço de sombra
No jornal O Globo do dia 03 de setembro último, escrevia Eric Nepomuceno – lembrando o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), que teria feito 80 anos naquela data: “A gente é o que a gente escreve, e o que a gente escreve é o que a gente é. Uma coisa depende da outra, está diretamente ligada”. O que me remete à frase-emblema de Mário Faustino: “Poesia e vida minha deverão seguir paralelas”. E, por extensão, me leva à minha querida e hoje já saudosa amiga, a poeta Lina Tâmega Peixoto (1931-2020), morta em Brasília na tarde de 1º de setembro, há apenas três dias: ela escrevia como se vivesse, e vivia como se escrevesse.
Na noite de 12 de abril de 2019, Lina Tâmega Peixoto lançou seu último livro de poemas, Alinhavos do tempo, no Centro Cultural Humberto Mauro, em Cataguases. Na ocasião, ela fez uma palestra intitulada “As projeções do Barroco na poesia de Cecília Meireles”, poeta de quem foi amiga. O livro já havia sido lançado com grande sucesso em Brasília no final de 2018 e, em janeiro do ano passado, na Casa do Brasil em Lisboa.
A lembrança de Lina Tâmega Peixoto naquela noite – e do Planalto Central – leva-me a dezembro de 2017, quando de uma palestra sobre poema visual que eu fiz na Biblioteca Nacional de Brasília – com a honrosa presença de Lina. O diretor da Biblioteca, Carlos Alberto Ribeiro, a acompanhou até à porta quando ela estava de saída. E depois se desculpou comigo por ter deixado a sala por alguns minutos. Carlos Alberto disse então uma coisa que me deixou orgulhoso de minha querida amiga: “Lina Tâmega é uma entidade aqui em Brasília, foi uma honra tê-la conosco nesta noite”. Não me lembro ao certo se o que ele disse foi mesmo “entidade”, o que parece coisa do astral, mas se não foi deve ter sido alguma palavra afim, que Lina é mesmo “alto astral”.
Ela sempre me maravilhou com sua escrita delicada, elegante, escrita de fino trato – quer surgida de seus belos poemas, quer adornando um mero email do cotidiano: “Um abraço quase de sombra que o spot constrói entre meus dedos. Lina”. “Desejo que tudo em você fique subordinado à verticalidade e ao horizonte do mundo físico e às operações da inteligência emocional. E permaneça com a extraordinária lucidez de torcer as nuvens do desencanto para o clarão do imaginário”. “Escrevo-lhe para deixar o cisco da letra, já que não houve o som do espírito. Depois, mando palavras.
Cambalhotas de abraços, Lina”.
Fala, escreve, respira poesia
Dois rios rimam a minha vida.
Um, desde nascida;
O outro, deságua no sobrenome.
Um, me tem cativa desde menina;
O outro, guarda a sombra de meu avô.
Dois rios: meus cinco sentidos.
Cataguasense moradora em Brasília desde os primórdios de sua construção, a professora universitária e ensaísta Lina Tâmega Peixoto é poeta de longo curso, e das grandes. Cidadã do mundo, profundamente marcada por suas raízes portuguesas, na verdade ela nunca se desprendeu totalmente do mundo-Cataguases, como afirma: “Ser mineira de Cataguases é o que não me faz ser estrangeira em Brasília, é o que me faz ser habitante de qualquer rua do mundo e nunca ser traída no meu jeito de viver”.
Sua trajetória literária inicia-se em 1949 ainda na mocidade de Cataguases, com a edição da Revista Meia-Pataca, ao lado do poeta Francisco Marcelo Cabral, o Cabruxa, seu (e meu também) grande amigo. Em 1953, surge o primeiro livro Algum dia. Somente 30 anos depois, o segundo, Entretempo, 1983. Mais duas décadas sem publicar, quando em 2005 lança Dialeto do corpo. E, na sequência, num só ritmo, Água polida, 2007; 50 poemas escolhidos pelo autor, 2008; Prefácio de vida, 2008; Os bichos da vó, 2008; Entre desertos, 2014, e Alinhavos do tempo, 2018.
Foi esse Alinhavos do tempo, seu derradeiro livro, que aportou aqui em casa em dezembro de 2018 – na Cataguases margeada pelo Pomba, rio tão caro a mim quanto à minha amiga poeta. E, como sempre, trazendo a sutileza das metáforas tão características até mesmo em suas dedicatórias: “Para o querido amigo Ronaldo, os ruídos do coração que alinhavam o abraço de admiração e amizade que leva estas palavras até você, Lina”. A poesia assoma em cada gesto, em cada um de seus escritos – não só na força, nos muitos punti luminosi de seus poemas, motor por excelência da poesia, mas num ensaio, numa carta, num bilhete, num email, num zap, numa postagem qualquer. “Qualquer”, palavra errada: tudo nela indica extremo zelo, cuidado, acuidade – tudo emana resplendor, halos impregnados de uma poética de grande intensidade. Lina fala, escreve, respira poesia.
O boi (e a noite) no quadrado
Tão logo pude, registrei por email o recebimento de Alinhavos do tempo: Seu livro chegou às minhas mãos já há vários dias, mas ainda não agradeci porque queria ler antes, e ler pausadamente, como sempre degustando sua poesia, que me é muito cara. Assim, ele andou comigo já algumas vezes durante breves e recentes viagens. E eu viajei em suas páginas como sempre, e sempre com grande prazer.
Como, por exemplo, na narrativa para a construção do poema “O boi no quadrado”, num enquadramento em contra-plongée que remete ao cinema de Humberto Mauro. O cineasta gostava de enquadrar bois no alto dos morros de Minas, na contraluz do sol. Em sua infância, certamente você, Lina, nunca ouvira falar de Mauro, menos ainda dessa sua preferência por enquadrar bois no alto dos morros. Mas o alumbramento parece o mesmo, quase uma epifania:
“Uma menina canta alguma coisa. Súbito, entram no canto palavras sobre um boi no quadrado. A imagem deste boi, sozinho no alto do morro, dentro de um quadrado de arame farpado, visto há muitos anos, solta-se de sua prisão e vem ser o lamento da tristeza retido nos ossos da solidão. Esquecida a música por instantes, fica o poema.
A percepção do mundo que me havia sido doada, foi um deslumbramento. (...) A partir daquele momento, a poesia segurou minha mão: “... não mexas no boi/ não batas no boi/ que o boi quer dormir/ sonhando que a noite/ subindo das noites/ sobe-lhe nas costas./ E lá se vão eles/ o boi e a noite/ atrás da saudade”.
‘Que coisa mais perfeita – disse eu ainda em meu email (sim, “papai trabalha por email”, como diz minha filha Ulla) – isso que você escreve no “pré-prefácio”! Isso: “preciso envelhecer o presente para recriar as coisas que se escondem dentro de mim e que resistem às delicadas sutilezas da imaginação, no fazer-se obra literária”. E, na sequência, a citação do poema:
“Piso descalça histórias envelhecidas/ no ranger das tábuas”.
Acho que aí está, em perfeita conjunção, uma síntese de todo o seu livro, de toda essa delicada, sutil viagem “para dentro de seu quintal”, de sua casa às margens do rio Pomba, ali onde o presente é envelhecido com a imagem da infância-joaninha da menina aturdida com o desconcerto do mundo. “(...) Perguntei à minha mãe como fora possível eu ter mamado na joaninha. Ela riu muito e, me afagando a cabeça, revelou que Dona Joaninha, a mulher que morava em frente à nossa casa, havia me amamentado por uma semana. O estranhamento de antes se transformou no sopro da via possível de ser inventada e carreguei o mundo para dentro de um casulo... e me transformei em herança e poesia”.
Criação do mundo e seu naufrágio
Aliás, ao falar na casa de sua infância na rua do Pomba, no quintal que se debruça sobre o rio, e na Ponte Velha, surge logo aquela imagem belíssima: “uma carcaça de estrela, tombada do azul que o céu sustenta”. E falar no “seu” quintal me leva (você nos leva, Lina) ao impacto da imagem (como se nós a víssemos enquanto lemos) daquelas formigas, cogumelos e etc que se abrigam “para que a água do regador/ venha cabisbaixa em sua fúria/ e não alveje a criação do mundo e seu naufrágio”. A criação do mundo e seu naufrágio: que força têm essas palavras-imagem no universo daquela menina que apreende o mundo a partir do quintal que é “seu mundo”. Seus poemas respiram poesia a cada página, Lina. E nos encantam, como mágica! Sim, que encantamento tamanho salta dessas (suas) palavras que adejam sobre “a clara, linda, alta e fina fala” (que belo e altissonante decassílabo!).
“Aquela escrita de coisa, coração e susto/ é o encanto faminto que entra entre falas adentro”. Drummond disse um dia ao ler um poema de O Centauro (1949), o primeiro livro do então jovem Francisco Marcelo Cabral, o nosso Cabruxa: “Aqui tem coisa”. Não é preciso que eu repita o dizer de Drummond, pois sei que sempre vou encontrar muitas e belas “coisas” em seus poemas. Mas quando me deparo com uma pedra-de-toque como “Volteio o corpo/ e a saia abre-se em varanda” sinto que a força dessa imagem só pode me levar a dizer que aqui tem não só “coisa”, mas um constructo de muitas e muitas belas coisas.
Ótima e mais que oportuna citação a que você faz de Walter Benjamin, aquilo da importância de se rememorar a vida (para o poeta) ser mais importante que a própria vida vivida. O filósofo Benjamin, pelo menos aqui, me remete também, de certo modo (paradoxal, ou não?), ao lema que Mário Faustino colocava como epígrafe de sua página “Poesia-Experiência” no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Volto a ele: “Poesia e vida minha deverão seguir paralelas”.
Ah, sim: não posso me esquecer de mencionar o belo estribilho de Cantiga IV: “Vou a cuidar da razão/ que do amor cuida o coração/ Ai, coitada de mim!”. Pois é, minha amiga, conduzida pelo poema, a literatura assoma de cada palavra que você escreve. Repito: você respira poesia – e da mais alta qualidade. Parabéns pelo novo livro e receba daqui das margens do rio Pomba (infelizmente não do seu quintal), o beijabraço mais afetuoso do amigo e admirador de sempre, Ronaldo.
Não há tremura
Lina foi sempre saudada por grandes nomes de nossa literatura, de Drummond (“Você alcança a maturidade poética com Entretempo, não há tremura ou indecisão de traço, tudo é firme, quando necessário, sutil, e sempre lúcido e ardendo de uma chama interior...”) a Manuel Bandeira (“Você sabe pôr o infinito em duas ou três palavras muito simples”), de Marco Luchesi a Fábio Lucas, de Walmir Ayala a Affonso Romano de SantAnna, de Anderson Braga Horta a Fernando Py, de Salim Miguel a Astrid Cabral, de Joaquim Branco a Oswaldino Marques, de Ronaldo Cagiano a Cyro dos Anjos, de Tanussi Cardoso a Laís Correa de Araújo, de Angélica Torres Lima a Álvaro Alves de Faria, de Henriqueta Lisboa a Murilo Rubião, a Francisco Marcelo Cabral – esse enorme poeta que foi seu amigo Cabruxa – e a outros, muitos outros nomes, vamos dizer, “de proeminência” (palavra que Lina possivelmente evitaria, mas não encontro outra agora).
Ela prezava mesmo e mais que tudo as palavras de seu “mestre”, o professor e grande crÍtico literário português Hernani Cidade, seu primo materno, a quem dedicava particular afeição: “A tua poesia resiste ao mundo das impressões e sensações porque é forte e soube suprir a delicadeza pelo excepcional do vigor. Parece que se desenha nos teus versos uma forma de contorno mais preciso, mais iluminada de luz da consciência, de mais funda vibração e ressonância”. Ou as palavras de seu tio, o intelectual e grande contista cataguasense Francisco Inácio Peixoto, para quem leu seus versos de mocidade: “Sempre gostei de sua poesia, onde encontro uma linguagem mágica que me enternece. Desde os seus vagidos iniciais, você nunca me desmereceu”.
Cabruxa: chama que ilumina os cimos
Nossos poetas de agora (e sempre) sobrevivem mais e cada vez mais – eu escrevia em 2010. E mais e mais vivazes e plenos de talento e vitalidade. Francisco Marcelo Cabral acaba de completar 80 anos, Joaquim Branco já entrou nos setenta desde maio e Lina Tâmega Peixoto já é, vamos dizer, avó – pois a gente não está aqui para entregar a idade de tão nobre dama. E todos os três atuais e atuantes, como poderemos ver no próximo dia 04 de dezembro, quando estarão lançando seus novos livros no Museu Chácara Dona Catarina. Cabral, “Campo Marcado”. Joaquim, “Janelas de Leitura”. E Lina, “Os Bichos da Vó”. Uma festa, um orgulho para Cataguases: não é toda cidade que pode contar numa mesma e única noite com a presença de seus três grandes poetas apresentando suas obras mais recentes.
Mas afinidade, afinidade mesmo, era a de Lina com o poeta Chico Cabral, o Cabruxa: “Penso que a visão crítica e a apreensão do discurso estético – ela escrevia no prefácio de um dos livros de seu querido amigo – “podem constituir um novo objeto poético na obra Campo marcado, porque minhas palavras irão, desmesuradamente, ampliar a relação de amizade e imensa admiração que vai se projetar no mundo do sensível, da emoção e da persuasiva sedução, recriado por Francisco Marcelo Cabral, em seus poemas”.
Em Dialeto do corpo Lina cita Paul Valéry em epígrafe – Celui-lá qui veut écrire son rêve/ se doit d’être infiniment éveillé – e pede um prefácio a seu grande amigo Cabruxa, que escreve:
“Ao me meter a fazer este ´pequeno prefácio´ ─ ´em cima´ dos originais, ainda não definitivamente estabelecidos pela Autora, trabalho ´no escuro´, no meio de um jogo de agulhas de tecer e facas afiadas, e desfruto de uma experiência rara: a de acompanhar o processo de produção de uma poeta que, ao mesmo tempo – ´desde 1970´, como me revela –, repete para si mesma o paradoxo de Valéry – Celui-lá qui veut écrire son rêve se doit d’être infiniment éveillé – (“Envio a frase do Valéry com que pretendo abrir o livro e a repito muitas vezes. Me diga se gostou dela? É importante para mim saber isso”).
Com toda a delicadeza
“Certa vez, em carta – continua Cabruxa – lhe disse de Entretempo e aqui repito. Você consegue – é incrível! – uma economia, uma intensidade, uma contundência. Não é assim que os miles de poetas estão escrevendo por aí... para serem esquecidos. Eu mesmo me comparo a você e me rendo. Você tem a chama cristalizada que ilumina os cimos e deixa os vales na umidade e na penumbra. Penumbra talvez não seja a palavra, mas a ideia é de luz minimal, que solicita à pupila o esforço ativo de ver.
“Às vezes sou tentado a ousar uma leitura contextual de seus poemas. Os parentescos que intuo, a radicalidade de uma autoria original, a “voz”, “plana, seca e desesperada” que você empresta ao seu ser-poeta, cuja feminilidade – eu diria: carnal – é explícita e voluptuosa, sem perda da disciplina de ofício que dá ossatura ao seu texto (“o róseo grão da poesia ata em feixe minhas palavras”). Mas não me permito pairar tão alto. Porque não sei se minha admiração e afeto por você não embotaria definitivamente o olhar crítico sobre uma poeta que estoura os limites das Minas, com toda a delicadeza, quase pedindo desculpas por o fazer”.
Sustos na metade de tudo
“Arremessada ao pretérito espaço, a varanda é uma trama de talos de madeira algemados com a bainha do muro que a solevanta do capinzal. O arvoredo em cochichos, os cacos de esmeraldas, a curva da chuva que põe no colo a paisagem, o sol-posto do consumado encontro à beira de mim, tudo é florescer do acaso, tudo são sustos da memória. Existo na metade de tudo, na metade de nada, e procuro no outro lado do percurso o jogo ambíguo das palavras. A música vibra o ar que bica e estala as trêmulas rendas da voz. Desembrulho outras palavras e extingo a noite – plana, seca e desesperada. Entreluz como tranças de sol o sibilo dos tons na garganta”.
Até aqui, esta ciranda quem me deu foi Lina. Que não mora nas areias de Itamaracá, mas – olê-olá! – onde a poesia faz da sonoridade o seu estar. Tessitura que entreluz como um refrão dourado, tranças de sol, a poesia de Lina Tâmega Peixoto é susto que nos solevanta, é frase (jamais) igual a outra frase, é música e vibra o ar que bica e estala as trêmulas rendas da voz.
E repasso a vida./ Extasiada, sem rumo, junto à fronteira do nada,/ engendro um refrão dourado/ para recitar, luxuriante,/ com febre e desmaios,/ uma frase/ igual a outra frase./ Gêmeas em mim. Crase. Assim, de sopetão, surge esse susto, essa “crase”, esse súbito frear da frase, esse verso que lembra o Drummond daquele “Stop. / A vida parou”.
Lina sempre surpreendente.
Como surpreendente – relâmpago, metapoema, objeto-poesia – é esse primor a mim dedicado em seu livro Dialeto do corpo: “e o poema se desfaz com o vento”.
Alquimia do verso
Para Ronaldo Werneck
Procuro um objeto
para ser poesia.
meia-tristeza, meio-amor,
meio-mundo, meia-metafísica
serviriam para sustentar o poema.
Piso descalça o movediço
ofício da escrita
e procuro o limite da estrofe.
Não ultrapasso o encantamento
que fabrica a alquimia do verso.
Cansada, busco a palavra
na artimanha da respiração.
E o poema se desfaz com o vento.
Lina Tâmega Peixoto
Brasília, 2005
Palavra & perenidade
A morte de Lina Tâmega Peixoto no último 1º de setembro não passou em branco: logo chegavam textos homenageando a poeta, vindos de vários lugares: Brasília, Rio, Ouro Preto, Cataguases, Lisboa. Vários e afetuosos os saudares e louvações de seus muitos amigos.
De Brasília, publicava ainda no dia seguinte a poeta Angélica Torres Lima (que me disse ter passado a noite escrevendo, ainda chocada com a morte de sua amiga): “Tão significativo quanto deixar como último legado um livro intitulado Prefácio de Vida é partir dela, a vida, no primeiro dia de setembro, quando o Cerrado se derrama em flores... É como dar um toque mágico ao momento, para todos tão difícil e sofrido. É como fazer um truque com imagens, que só poetas de primeira grandeza, como Lina Tâmega Peixoto, são capazes de fazer sem ter planejado. Lina pôs ontem de luto a poesia brasileira”.
De Ouro Preto, o ex-Secretário de Cultura de Minas, Angelo Oswaldo, me enviava email: “Minha solidariedade. Os Peixoto parece que vieram de Portugal (os Botelho, dos Açores). Tâmega é o rio que passa em Amarante e junto à velha ponte postava-se São Gonçalo. Mas Lina não era portuguesa, senão mineira de Cataguases tocada pela poesia verde banhada nas águas do Pomba espraiadas no lago Paranoá. Vamos saudá-la na perenidade de sua palavra poética”.
Do Rio, um totem ontológico
Do Rio, o poeta Tanussi Cardoso me mandava pelo zap: “Lina era uma das nossas maiores poetas, cuja discrição silenciosa impediu que seu nome e sua poesia tivessem o reconhecimento merecido. (...) O uso inteligente das metáforas, inversões, metonímias; das palavras como um totem ontológico radical; desta íntima “respiração” entre elas; desse silêncio loquaz que capta a memória e o vazio das coisas, e, ao mesmo tempo, o seu barulho – são de uma sensibilidade rara em nossa poesia”.
De Cataguases, o poeta e crítico Joaquim Branco: “Ontem (01-09-2020) recebi a notícia da morte de Lina Tâmega Peixoto (1931-2020), num hospital de Brasília. Fiquei muito consternado, e mais ainda, pois já havia tomado conhecimento do que acontecera ao poeta Sebastião Carvalho. E com o Pedro (seu irmão, o poeta P.J. Ribeiro), que falecera no final de março, os fatos somados tomaram vulto a ponto de Zeca Junqueira comentar que a cidade de Cataguases se despoetizava... Não encontrei melhor expressão para o momento. Entre as possíveis damas da poesia cataguasense há uma prima dona: Lina Tâmega Peixoto.
“Ler um livro de Lina – escreveu ainda Joaquim – requer tempo. Não o tempo normal que se gasta para leituras cotidianas, mas um tempo para se concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do que a fruição de palavras que vão puxando palavras. Seu discurso requer um silêncio dentre desse tempo para se buscar. (...) Fui dirigindo meu voo por penetráveis porém surpreendentes vias – que é assim o caminho dos bons livros – deparando ora com o recurso da metalinguagem, ora com a difícil música de alguns versos ou com a ligeireza do pensamento”.
O mesmo Joaquim Branco – meu grande amigo e companheiro de aventuras literárias que já vão para mais de meio século – citado por Lina num dos e-mails que ela me enviou, com a poesia de sua imensa delicadeza, coisa de eterna lady, de primeiríssima dama da literatura:
“Caríssimo amigo: acabei de ver o que se maravilha da vida. E estive aí no Centro Cultural Humberto Mauro para os 90 anos da Verde e escutei você narrando Humberto Mauro e falando no Mac. Voltarei depois para ouvir mais coisas de seu gesto de coração de poeta e mais, pedaços de sonhos que modificaram seu acordar em Cataguases. A cidade precisa de pessoas como você e o Joaquim, capazes de por à superfície a memória definindo o Rio Pomba e cheia de estrelas refazendo a luminosidade do pensamento. Não pude deixar de registrar aqui as emoções da inteligência que tive. Esta a mais perfeita e profunda que vive no espírito. Peço que receba meu abraço de afeto por suas palavras e que o coloque na jarra como uma flor. Lina”.
De Lisboa, um sopro de humanismo
De Lisboa, o também poeta e crítico cataguasense Ronaldo Cagiano, que vive atualmente na capital portuguesa e que lá esteve presente ao lançamento de Alinhavos do tempo em janeiro de 2019, enviou a meu pedido o seu depoimento:
“Caro Ronaldo, foi uma ótima noite o lançamento da Lina na Casa do Brasil aqui em Lisboa: bom público, apresentação da escritora Vania Chaves, um belo ensaio lido por uma professora da Universidade de Lisboa e depois as palavras da Lina. (...) Foi um evento marcante, principalmente porque reuniu amigos, colegas, leitores e conterrâneos de Lina e todos tiveram oportunidade de percorrer esse panorama sobre sua vida e obra, buscando a gênese de seu processo criativo, desde os primórdios da estudante que criou com Francisco Marcelo Cabral a revista Meia-Pataca; do estímulo do tio-poeta Francisco Inácio Peixoto; do sopro literário de Hernâni Cidade, um primo materno e um dos reconhecidos críticos literários de Portugal que, do outro lado do Atlântico, trouxe-lhe informações, conselhos e dicas técnicas sobre o fazer poético; das influências e amizade de Cecília Meireles, da presença de Cataguases e Brasília na sua trajetória existencial e criativa, dos tantos tempos, entretempos & alinhavos que constituem sua tessitura e culminam no polimento estético de sua arte”.
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